15 de dezembro de 2008


Olhar fechado

Viajar no que não se pode planear.

Saltar o muro que ainda há pouco lá não estava.

Empurrar a porta que afligia.

Deitar na relva. Adormecer. Acordar.

Olhar e fingir que não vê. Reproduzir o mundo assim não visto.

Transpirar de correr como um louco.

Andar às voltas para ficar tonto.

Perder.

Porque está sozinho.

12 de dezembro de 2008


O sonho de uma criança

Se eu pudesse contava-te a nossa história
Antes do amanhecer

Viajávamos num barco de papel
Embalado de um vento suave
Suspiro dos segredos trocados

O plano era o tempo incerto
E o limite uma vasta plasticina azul
Entreaberto

Nas nossas mãos
Pequenos bonecos de lã
Teimosos
Desatados na infância inquietante
Desafiando o futuro

Enchíamos balões
Para suspender o tempo
Em cais de areia
Onde nos queríamos deixar ficar

E tudo o que será
Pertence às mãos da criança
Que continua a sonhar

8 de dezembro de 2008


Sinónimos de liberdade


Pudesse eu respirar o teu corpo

Desnudar-te o preconceito

E nas tuas mil faces silvestres

Escrever-te sinónimos de liberdade

24 de novembro de 2008


O enternecimento da diferença


Às tuas palavras

Respondo com o silêncio do anoitecer

Ao teu toque

Estanco-me na timidez de criança

No teu beijo

Escrevo um sopro de Outono

No teu segredo

Uma vontade de contar ao mundo


Porque o mar desenha-se em terra

Com o enternecimento da diferença

19 de novembro de 2008


Laranja


Hoje escuto o silêncio em mim

Como laranja ao entardecer


Círculo


É a imagem de Deus no mundo

Um círculo


E a vida resume-se a círculos

Com muros em volta


O animal em cada um enfurece-se na procura

De um início inexistente

Pobre

Seco de impotência


Tardiamente reconhece a passagem

Pelo espaço já ocupado na memória

Como que por lapso


E a sorte é de quem descobre

Que em cada repetido círculo por onde passa

É mais uma oportunidade

Para quem sabe

Viver

18 de novembro de 2008


O adeus


A luz toldou-se

E o abismo é um passo incerto

Apodrecido do Inverno


Os cheiros gélidos

Percorrem-me como a morte

E o mais que quero é abandonar

O corpo que me persegue


Vejo falsas verdades

Árvores anarquistas em violentas marchas

Pedras religiosamente espalhadas

Entre corpos quebrados


Quem me persegue?

Que de olhos escancarados

Sou cego de medo


Quem me acolhe

A solidão estendida

Nesta floresta veementemente rasgada

No teu adeus

14 de novembro de 2008


O que é verdadeiro


Vivo de amores perdidos

Não quero acordar

O imperceptível ao olhar


Quem és tu

Já não me lembro

Quem és tu de novo


Poder, sedução, fuga

Ilusão, escravidão, morte


E quem sou eu de novo


Um lugar sem fim

De sonhos


Para quando a coragem de partir

O fim da desavença com a liberdade

De um mundo de sentidos

Perdidos


O início do que é verdadeiro

27 de outubro de 2008



Os dois mundos


Hoje caminhei sob a chuva

Sobre a chuva

Levitado na música do vento

Erguido no manto púrpura

Da noite espalhada


E só por um momento

O mundo inverteu a marcha

Dos sentidos eternos


Abriram-se-me os olhos em dois mundos


Um dos mundos era percorrido por um fogo inaudível

De cores que nunca vi

Onde só se poderia andar de olhos vendados

Porque a sensação era a certeza


Ao lado espelhava-se um mundo de cristal

Onde o caminho se desenhava em traços constantes

Nítidos de uma determinação penetrante


Não quis pertencer a nenhum

Não que não o pudesse viver amanhã

Mas porque o amanhã só será íntimo

Amanhã

26 de outubro de 2008


A memória do espontâneo


Não gosto da memória

É uma velha enlouquecida

Prisioneira de um castelo em ruínas

Onde tudo o que vive é fugitivo


Gosto da espontaneidade

O único traço da liberdade

Que não espera o tempo

Inexistente

Que não vitimiza a saudade

Do momento


A espontaneidade exige a extravagância

Do desconhecido

Para o perfeito da situação

No imperfeito da eternidade


Amo o sonho do que poderá nunca existir


Dia após dia o dia


Ao início era um castelo

Erguido no mar

Voávamos baixinho

Em busca do caminho


Aos poucos destruímos a fortaleza

Abalámos a certeza

Desafio tão verdadeiro

E o vento passageiro


Agora vou poder ser

Para ti

Como um espelho

Que devolve o olhar

Como um rio

Ao entrar no mar


E se um dia tiver medo?

E se deres por mim tremendo?

Traz Deus no abraço

Junto ao teu regaço


E que dia após dia

Seja este dia

18 de outubro de 2008

O vento

As saudações incomodam-me
Como uma ferida sem dor
Como noite sem cor

O olhar, o sorriso vagabundo
O invisível interesse
O divisível incómodo
Das frases soltas

O olhar roda invólucro
Levanta-se de medo
Baixa-se de respeito
E um fogo redimido
Aperta todo o meu ser

Hoje levantei-me e apenas saudei
O vento
Frio, penetrante, sozinho
Perdido

12 de setembro de 2008

Fujo e amo


Fujo e amo

A inquietude que me enlouquece

Como o baralhar das cartas


Fujo e amo

A paixão que me enfraquece

Como o corredor ao chegar à meta


Fujo e amo

O beijo que me aperta

Como o vento ao passar


Fujo e amo

Porque só assim sei viver

O desconhecido


Aqui sinto a praia ao estender

Num comboio de sensações

Ao descarrilar


Poderia dar-te nome

Para que todos te pudessem chamar

Mas do desconhecido

Fiz a minha casa

30 de agosto de 2008

Nada é claro


Nunca saberia o que é o dia

Se não existisse a noite

Nunca saberia o que é o silêncio

Se não fosse o ruído

Nunca saberia o que é a dança

Se não parasse

Nunca saberia o que é a multidão

Se não andasse sozinho

Nunca saberia o que é a paixão

Se não me soubesse afastar

Nunca saberia o que é o risco

Se não me sentisse seguro


E os melhores dias são quando nada disto é claro

29 de agosto de 2008

Pai


Pai, o teu silêncio forte

Faz-me confidente

E percebo o infindável da vida


Na agitação do comércio de Bissau

No agarrar da mão do desconhecido

Sinto o teu sangue a correr-me nas veias

Fulgurante


E a tua imagem

Corre nos braços de mais um amigo

Na simplicidade

De um assobio


Ensinaste-me a amar o invisível

E a erguer a vida a cada passo

28 de agosto de 2008

Risco


Aqui não há risco

Ninguém arrisca sentar-se

À espera que a vida lhe diga

O rumo a seguir

Ninguém arrisca um dia sem pensar

Ninguém arrisca os batuques da noite

Ninguém arrisca não querer mais do que a vida

Segredo


Adormeço

Com saudades do abraço

Murmurante

Na audácia do segredo

Voltar


Enlouqueço

Mudo

Como um escravo

Mãos vazias

Coração atrapalhado


Apetece fugir

Voltar à liberdade

Da tabanca

Tapar os buracos

Que me atravessam

A alma


Apetece voltar

Ao inextinguível

Da controversa paixão

Enlouquecer


Caminho como um louco

Há procura do meu lugar

Não o encontro

Talvez nunca o tenha tido


Sufocam-me as prateleiras

Organizados em livros

Desconhecidos

As pessoas atarefadas

No politicamente correcto


Aqui respira-se seriedade

Mas a tranquilidade

E a paixão

Voam no alto


Enquanto viajo

Louco amordaçado

Salto na procura

Da liberdade africana

Companheira de vida

Esta gente


Por mais que me entranhe

Na terra do castanho forte

Que corra de mão dada

Ainda não tenho o cheiro

Desta gente


Ainda não tenho a paciência

Da manhã a acabar

A tarde a chegar


Ainda não tenho a força

Do teu carregar


Ainda não tenho o silêncio

Do teu sentir

Tão leve

Como a dança que já começa

Na noite

Futuro imprevisível


Por que te sentas aí

Mãos atadas?

Por que te julgas impotente?

A terra é de um castanho forte

E o horizonte de um verde de esperança


O teu olhar é penetrante

Como o vento

As palavras transparecem

A bondade que carregas

Fazem-me teu companheiro

Da viagem do tempo


A presença de Deus faz-se visível

No futuro imprevisível

Hesito


Como é estranho voltar

Ao sonho construído

De um vermelho acinzentado

Do pôr do sol


Nada me pertence

Nem o silêncio da chuva

Ao desabar

Nem o escuro da noite

Ao deitar


Sinto-me como pássaro

Que estranha o seu ninho


Hesito

Fujo, espreito

Receio entrar

31 de julho de 2008

África aos olhos de Deus

Chegaste confusa
Da solidão que te circundava
Das cores do fim da tarde
Na linha de caminho de ferro
Que seguias a pé

O comboio tinha-te deixado ali
No bairro de casas em forma de lata
Nos cheiros humanos do suor
E a areia do deserto

Andaste trinta mil metros
Sem um sorriso
Sem uma palavra
Inquieta na forma como Deus
Olharia aquela terra de África

A paisagem tinha tonalidades de um azul doirado
Aquele bairro um preto de morte
Pedaço de gente

E a esperança que cores teria?
O castanho da terra em liberdade
Ou o cinzento dos condenados?
Forcado

As rosas que caiam
Os chapéus voando na sua direcção
Os gritos enraivecidos
Na pista da glória

O sangue estancado na terra
No silêncio instantâneo da arena
O som da corneta
Na força do protagonista
Necessidade furada

A vida tornou-se tão circular
Em anfiteatros de pedra
Terras
Sem vento e sem mar

Meu amigo
O caminho não pode ser circular
Como o conhecido
Tem vales e falésias
Tem ausência, proximidade e loucura
Para ser íntegro
Segredo da noite

Sei que é eterno
O lago despido de preconceito
A força da nossa paixão
E o segredo da noite
Espelhado

Os pés percorrem a lama
Tocando-se na sintonia
Do desconhecido

O abraço
Bem perto
Ergue-nos no manto
Da soberania vivida

És o que desejo
Na audácia da inexistência de palavras

29 de julho de 2008

Ainda que volte breve

Ó mãe
Não temas por mim
Não chores a minha ausência
Que a vida ensina-nos a partir
Em busca desta dádiva
De podermos ser mais santos
De nos fazermos presentes
Na vida de outras pessoas
Outras comunidades
Com toda a liberdade

Em tempos tinha medo
Arrepiava-me no escuro da noite
Imaginava-a ausência
Corroía-me a imagem da morte

Agora, um pouco mais livre
Trago a saudade ao peito
Mas também a certeza de um caminho
Que busca a eternidade
Em fulgores, sorrisos e paixão
Que alegria esta
Que sorte poder reinventar passos
Em cada momento
Em cada pessoa

Houve dias em que chorei o pai
Ainda choro
A ausência de um exemplo prático
Mas trago comigo muito mais
O exemplo eterno
O sossego, o silêncio e a confidência

Queria só dizer-te
Obrigado
Ainda que volte breve
Noite

Senhor, cada vez que olho a noite
Fica em mim a vontade de me envolver
Em cada pessoa
Em cada lugar
Em cada momento
Como sangue que percorre
Todas as veias
No toque do seu caminho
As palavras

As palavras libertam-me
Como a chuva que nos molha
E nada mais há a fazer
Desarmado em loucura

Não voltes depressa
Que esta sede é pura
Como a água da cascata
E a loucura
O silêncio da noite

25 de junho de 2008


Rasgos de vida


Há coisas que não podemos contar

Dentro de nós

Ganham formas

Tonalidades que não conseguimos exprimir

Tactos desenhados


Todos os dias ganham movimento

Porque corremos ao pensar nelas

Em fúria

Damos-lhes emoções e fantasias


Um dia

Saberemos se são meras ilusões

Se são rasgos de vida

24 de junho de 2008

Lei da vida


Escureceu a noite

E com ela o fogo


O vento tomou conta das cinzas

E carregou a última brasa

Incandescente


Os toros desalinhados

Insistem em apodrecer

Em sossego

20 de junho de 2008


Sul


Não fiques aí muda

Mãos paradas

Ergue os braços nessa luta imponente

Olha-me com a ternura de quem parte

E vai estrada fora


Não leves nada

Não temas o que não tens

Caminha apenas com o entusiasmo

Do sul

Sente o cheiro, a cor da humidade

O quente da terra que pisas

E a dança dos corpos nus


Irei para outras paragens

De um cinzento forte

Onde o mar abraça a terra desfraldada

Onde a esperança nunca há-de morrer

Porque a vida é para quem a sabe sorrir


Um dia

Corpos exaustos

Sentados nos buracos do chão

Havemos de contar as histórias

Da nossa paixão

2 de junho de 2008


O silêncio do velório


Já não há rosas no teu colo, Constança

Exaustas da companhia

Desfizeram-se em espinhos


Já não colocas pétalas, Constança

De magnólias de uma seda branca

Ao portão

Desenhando sonhos


Já não roubamos laranjas, Constança

Da cor do pôr-do-sol

Envelheceram connosco


Já não nos escondemos, Constança

Entre o milho alto

Desfiamo-lo inocentes nas pequenas loucuras


Já não caminhamos pelas falésias, Constança

Embebidos em sal

À nossa volta já só existe areia solta


Vivemos no silêncio do velório


Manuel Sousa

30 de maio de 2008


Até não poder mais


Não posso mais mentir, Constança

Sou apenas a resistência do passado

Como guerrilheiro fiel

A um amor que já passou


Não posso mais sentir, Constança

Os braços da revolução

A pele maltratada de Maio

E uma esperança

Morta em vão


Não posso mais descansar, Constança

À sombra dos dias azuis do rio

As palavras flutuantes

Afundaram-se

Como pedras


Não posso mais contar segredos, Constança

Como quem estica os braços

Na escuridão

Somos apenas desconhecidos


Não posso mais, Constança

Ser manso como um sopro ao ouvido

Agreste como pássaro a aprender a voar

Já não rosas

Entre nós


Não volto

Até não poder mais


Manuel Sousa

28 de maio de 2008


Desalojado

Às vezes desejo partir forçado

Não poder levar nada

Nem as certezas

Escutar o silêncio dos passos sem chão

Perder-me na multidão


Entregar a sobrevivência em mãos alheias

Aprisionar o afogo

De já nem sentir raiva

Porque à volta tudo foi desalojado


Agarrar alguém

Prender a mão numa oração improvisada

Porque a vida e a morte

São rostos desconhecidos

25 de maio de 2008


Vives em mim


Às vezes parece que ainda ouço a tua voz

Imponente

Que a morte não levou o teu silêncio


Às vezes as palavras têm a tua dor

A tua agitação interior


Às vezes volto a ser criança

E a lua tem o teu rosto

Imagino-te escondido

Ao percorrer a escuridão

Nem consigo disfarçar o arrepio de criança

Ao imaginar encontrar-te


Mesmo que não sejas mais real

Hei-de procurar-te sempre

Hei-de contar-te ao mundo

22 de maio de 2008

És invisível

Enquanto a chuva cerra o horizonte

Exagero tudo o que penso

No cinzento da noite


Não sou inteiro

Antes redefinido a cenários

Voltando ao improvável

Dos nossos corpos abraçados


Deslizo no impossível

De ontem


Amanhã voltarei a caminhar à chuva

Porque amo o invisível

21 de maio de 2008


Cumplicidade


Estranha facilidade com que te tornaste confidente

Bastou talvez o meu sorriso alheado

Pouco mais

Logo desembocaste em preocupações

Lamúrias cinzentas intocáveis

Débil corpo mortal


Gosto da cumplicidade

Do bater de um coração irrequieto

O respirar da inquietude

O correr nu das preocupações

Mas de quem posso conhecer no seu todo

Inesperadamente sem defesas


Gosto do suor entranhado

Da alma

Desafiando a ansiedade corporal

Da confidência

Que em ti não existe


Gosto do silêncio

Do fumar de um cigarro

Confiando à vida não apenas mais um dia

Mas o dia

15 de maio de 2008



Fascínio


Não acredito no amor à primeira vista

No amor, talvez

Acredito no fascínio


Gosto das pessoas que bebem água

Pelas mãos suadas

Na fonte mais perdida


Gosto de quem caminha introspectivo

No silêncio incómodo da sua alma

Sem fim à vista


Gosto de quem me agarra repentinamente

Só pela euforia


Gosto da mão estendida

À procura do abrigo cúmplice

Dedos enternecidos

Com a pedra mais aguçada


Gosto do olhar comprometido

No abraço pesado

Da chegada


Gosto da incerteza do próximo encontro

Da espontaneidade do fascínio