2 de novembro de 2009

O orgulho não morrerá?

É hoje que parte a loucura.
É hoje que me saem as palavras
Emperradas da mó do baú.
É hoje que cai a máscara.
Hoje.
Não perguntes porquê.
Tinha simplesmente de ser hoje.

Hoje poderei dizer-te,
Ainda que por meias palavras meias,
Que a minha mentira é ter desistido
Da luta dos dias em luta.
Da nossa luta.

Tragos de whiskies fáceis, provavelmente.
Mas é por ti, por uns poucos anos,
Ou talvez pelos poucos dias que trago na memória,
Que de dia espero a noite,
Da noite o teu silêncio.

É um brado mudo, bem sei.
No dia em que a palavra amor soou,
Não houve mais retorno.
Mas quem sabe se um dia
o dia não morrerá, as palavras gastas não morrerão,
E o orgulho não morrerá, também.

22 de outubro de 2009

O que somos não fomos

Andamos às voltas com o silêncio.
Somos, no fundo, o nosso silêncio,
A fonte seca das diversas águas que confluem,
Sem nome.
E quando nos pedem palavras,
Nem sabem o escuro em que elas nos descrevem.

Quem poderá conhecer o mar por palavras,
O som do rebentar das ondas,
Se ainda não mergulhou nele?

A incomensurabilidade de criança
É agora este silêncio,
Que nos guia num escuro tão intenso,
Que os olhos não servem,
As mãos não sentem,
E um grito não afasta o medo de nós mesmos.
É também este silêncio,
Que tolera os defeitos, os feitos,
Os sofrimentos e contentamentos de quem o faz.

É apenas deste silêncio que escrevemos palavras.

23 de setembro de 2009

Hoje ainda ninguém morreu

Anoiteceu.
E desta vez ninguém morreu nas imediações.
Um silêncio feroz a que não estava habituado.
Uma doença tardia.

Ouvem-se ainda tiros ao longe,
O tirilintar dos morteiros no esconderijo da noite.
Ninguém ainda morreu, confirma-se.

Aqui, não penso em Deus,
Esse Deus perto no longe, que se confunde com a noite.
Aqui, penso nos teus tornozelos deslizando no meu peito,
No teu sexo, imperturbavelmente húmido.

Aqui, envelheço sem dias num dia,
Como cancro a descoberto.
Aqui, putrifica a ignóbil pátria,
Que mata o seu povo,
O povo que ilegitimamente é seu,
E a sua mãe, terra.

22 de setembro de 2009

A cor

Outra cor.
Começaram a chover corpos perfumados,
Começou o que chamam uma peça,
E eu choro, choro como um pêndulo,
Neste espaço engalfinhado,
Talvez, aos vossos olhos, arrependido,
Deste dia que começa e acaba atrás das estranhas grades.

Aqui, conto sem escrúpulos os dias
Que sobejam até à sombra da minha morte, cor de ferrugem.
Morreria. É certo que morreria.
Incomoda-me apenas a brutalidade dos vossos olhares condescendentes,
Cinzentos vagamente claros,
Do desconhecimento de duas amigas,
Dos estilhaços em que desfiz todo o pudor de um corpo num pesadelo,
E esperei até ver rugas cor de magenta.

Pudesse eu ter olhos cor de novo,
Pudesse eu morrer durante a peça.

8 de agosto de 2009

O ponto branco da rampa preta

É talvez um daqueles dias em que as nossas palavras não têm nome, Marta
Não começam e não acabam
Fogem, enrolam-nos a língua nos odores acres do inexplicável

É talvez um daqueles dias em que as nossas músicas não têm tons
Não se exaltam e não se movem
Sufocam, ensurdecem-nos o ouvido em súplicas inaudíveis

É talvez um daqueles dias em que os nossos olhares não se cruzam
Não vêem e não choram
Fustigam-se em abstractos negrumes do fim da linha

É talvez um daqueles dias em que as nossas mãos não se tocam
Não sentem e não se realizam
Suam, paradas no corpo vazio

É talvez um daqueles dias em que a nossa cumplicidade se envolve
Sem nome, sem som, sem imagem e sem forma
Unem-se no ponto branco da rampa preta

29 de julho de 2009

A terra par’além do mar

Na minha terra há uma escada para o mar
Onde há garrafas, papéis e bigornas a boiar
Há laranjeiras e choupos e vento a passear
Uma colina, uma bicicleta à chuva,
E um cigarro por apagar

Na minha terra não há candeeiros
Não há urgência de amar
O fim da tarde senta-se em silêncio
Contemplando a noite despida ao chegar

Na minha terra ninguém faz planos
Dos velhos, dos novos, de todos hão-de cuidar
Há braços, há força
E um arado a trabalhar
Há um banco onde descansar
E onde morte é certa de acabar

Na minha terra vive um poeta, um pensador
Mais transparente que o ar
Escreve a imortalidade com o próprio sangue
E palavras emudecidas ao cheiro do relento dos pinheiros
Sem lugar

A minha terra é a memória esquecida
Par’além do mar

1 de junho de 2009

O amanhã esquecerá o hoje

Um prenúncio de morte recobre-se no canto
E uma leva de vento corta o rumo
Do homem que não quer mais voltar
(o amanhã esquecerá o hoje)

Os olhos pretos de pestanudos reviram-se num branco da bruma do mar
E o abandono adormece-o num sonho, sonho triste
São cavalos dançando o samba
São armas em punho festejando a revolta
São mulheres voando de asa delta
São barcos e canoas e barcaças de papel
São notas flutuando sobre a feira do quarteirão
São sacos de feijão
E tudo isto o amanhã não lembrará ao hoje

O limão rola do canto
As costas deslizam sobre o cartão
E, em última instância, o condenado, o réu e o juiz lembram-se
Da mulher ainda ontem violada
(O amanhã esquecerá o hoje)
Dos cinco contos de reis em cima da mesa de jogo
Do marido com cheiro a outra mulher
Da criança à guarda do tio abusador
E nada, nada disto o amanhã lembrará ao hoje

Escorrem suores e um cheiro a criança
Escorrem lágrimas, fiadas de sangue
Escorrem gritos de dor contidos
O condenado, que foi réu, juiz de si mesmo
Parte na última carruagem, onde se sentam os moribundos
E só por amanhã, se lembrará o hoje

21 de maio de 2009

D’este viver


Agora, as portas da casa do Chiado abrem-se num vazio,

E o cheiro a coentros das tuas mãos

A salsa do vagão de luz da cama do quarto de fundo,

E a maça verde dos ferrolhos das portas

São fedores da despedida a bordo do Vera Cruz


O jasmim das tuas pernas,

O manjericão e o martini dos teus lábios,

Vendem-se ao preço da partida

(ou da chegada)

Vendem-se ao preço dos odores pretos,

Dos odores a mosquitos, a minas, a medo,

Odores de homens escondidos, de homens a chorar, a sangrar


Aqui paga-se tudo,

Apaga-se tudo,

Paga-se o som dos morteiros em festa,

Apaga-se a tua última carta inquieta, as tuas mãos gélidas,

(Nada se apaga)

Paga-se o preço de uma arma em punho

Apaga-se da lista mais um soldado

(Nada se apaga)

14 de maio de 2009

A eternidade do idealismo

Permaneço...
Nu, uma ferida no joelho, outra no peito.
Respiro e não penso.
O sobrolho sangra, mas desse já nem me lembro,
Que fiz eu ontem?
Talvez pintando paredes com restos de comida,
Talvez o mesmo que hoje, que o amanhã

Sei o início, os ideais que me apedrejarão até morrer,
E os guardas que me cercam, sem rosto, com punho calejado de sangue,
Que me espancarão até esta dor no peito se avolumar ao abdómen, aos pulmões.
(Respiro menos)
De que valerá esta luta, esta bala encostada na perna direita?
(O amanhã será o mesmo que hoje, que o anteontem)

A mordaça esquece a dor,
A dor esquece a dúvida,
A dúvida enaltece o idealismo,
E o idealismo eterniza a vida,
Que não é minha, amordaçado, dorido, talvez em dúvida
(Que fiz eu ontem?)

Foram, por certo, os massacres das greves dos barcos de pesca,
Dos homens do lixo.
Foram, por certo, aqueles rapazes na prisão subterrânea em benefício de um saco de arroz roubado,
Aquelas raparigas violadas pela boleia que pediram, pelos livros que imaginaram.
Foram, por certo, as mãos queimadas do charro circulava,
Foram os muros, o desprezo, o ‘matem-se só a vocês’,
Foram tantos os que lembraram o Forte de S. Julião da Barra.

Permaneço e não permaneço...
Porque são estes que ainda lembro.
E o que fiz ontem não me interessa,
Porque enquanto um guarda tentava acabar a minha greve de condescendência com a vida que permanece lá fora,
Outro alguém disparava um tiro numa mulher,
Porque nasceu mulher,
Outro alguém cilindrava o carteiro, o mercador e o poeta
Porque o irritava a honestidade.

7 de maio de 2009

as cinzas do teu corpo


a minha dor é ver-te estendido nessa cama

a minha dor é ver-te sem forças para erguer um copo

a minha dor é beijar a tua pele em ferida viva

a minha dor é a mochila de guerra que carregas - essa que detonará em breve

a minha dor é a tua aparência de cristal putrefeito


faz tempo que o amanhã é mudo - silêncio maior que a vida

faz tempo que conténs os gritos da morte

faz tempo que tens medo da noite

e respiras sem sentir o dia a entrar


faz tempo que a minha dor não se extingue

nas cinzas do teu corpo

25 de abril de 2009

O dia da liberdade

só porque hoje é o dia da liberdade
é bom podermos duvidar do que somos, das nossas vocações, do nosso valor, pequenas recordações
só porque hoje é o dia da liberdade
é bom sabermos que pequenas mudanças são grandes voltas, são revoltas
só porque hoje é o dia da liberdade
não precisarmos de ser feitos posters para que alguém nos possa celebrar

7 de abril de 2009

Parte de ti


A tua pele desliza sobre a minha

E de novo o fogo inocente - aquela velha corda de harpa - reacende-se


De novo a violência do sofá

E o conforto do chão


Um cigarro continua a queimar lentamente no cinzeiro

Enquanto as tuas pernas se desnudam ao som da música inaudível


Lá fora - espreito por cima do teu ombro descoberto

O plátano deixa cair mais uma folha

Imagino o frio da noite

Os ratos escondidos por entre as madres da cobertura

Enquanto o teu corpo se apodera do meu


O teu corpo molda um movimento lento

Com um sem número de espasmos

Ouço o teu gemer pesado

O sufoco ao meu ouvido

E continuo encandeado da noite que há pouco não era


Peço-te mudo que não faças perguntas

Que não me telefones em dias quentes

Peço-te que não me olhes os pés descalços

Peço-te o que não é pedir


Perdoar-me-ás se te disser que te amo, que não te amo

Perdoar-me-ás se preferir a solidão, se nunca quiser estar sem ti

Perdoar-me-ás se não quiser ser ninguém, se quiser ser alguém


Partiste em silêncio - vi-te passar pelo plátano

E parte de ti partiu também