O amanhã esquecerá o hoje
Um prenúncio de morte recobre-se no canto
E uma leva de vento corta o rumo
Do homem que não quer mais voltar
(o amanhã esquecerá o hoje)
Os olhos pretos de pestanudos reviram-se num branco da bruma do mar
E o abandono adormece-o num sonho, sonho triste
São cavalos dançando o samba
São armas em punho festejando a revolta
São mulheres voando de asa delta
São barcos e canoas e barcaças de papel
São notas flutuando sobre a feira do quarteirão
São sacos de feijão
E tudo isto o amanhã não lembrará ao hoje
O limão rola do canto
As costas deslizam sobre o cartão
E, em última instância, o condenado, o réu e o juiz lembram-se
Da mulher ainda ontem violada
(O amanhã esquecerá o hoje)
Dos cinco contos de reis em cima da mesa de jogo
Do marido com cheiro a outra mulher
Da criança à guarda do tio abusador
E nada, nada disto o amanhã lembrará ao hoje
Escorrem suores e um cheiro a criança
Escorrem lágrimas, fiadas de sangue
Escorrem gritos de dor contidos
O condenado, que foi réu, juiz de si mesmo
Parte na última carruagem, onde se sentam os moribundos
E só por amanhã, se lembrará o hoje
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