25 de março de 2009

A dependência


A dependência é uma mulher pequena de feia

Perfumada das trevas

Carregando pela trela um cão vadio

Pêlo esbranquiçado de velho


A dependência é a guerra de valores

Flutuando na promiscuidade

De uma prateleira de supermercado

Na senha de um sonhador


A dependência é um copo

Meio vazio, estilhaçado

É a febre e um suspiro

É a cama dobrada de cansaço


A dependência é um país sem fronteiras

É um militar envolto em panos

Um polícia sinaleiro sem apito

Um ditador disfarçado de príncipe

Um corredor de olhos em Deus


A dependência é ansiedade patológica

Com todos os cheiros

Em todas as bandeiras


Onde quer que vás

A dependência não morrerá solteira

10 de março de 2009

O poema emudecido

Hoje acordei - levantei o braço num gesto solitário
Não cheirava a suor - o da noite de costas voltada
Não experimentava insónias - ressequidas dos cadáveres calados
Morreste em tudo, Constança

Findou a condenação do meu prazer - quem sabe involuntário
E o discurso do que não conhecias, do que não vias - sempre grosseira
Brotou apenas este poema emudecido - sem mágoa, sem saudade

E tudo quanto somos agora é o tempo que começa e o que acabou
É dia crepitante e o opaco
A vida e a morte pronunciadas

Manuel Sousa

4 de março de 2009

Venha o que vier, quem vier


É ainda o teu cheiro

Como quem mergulha em flores de laranjeira

É ainda as minhas mãos percorrendo o teu corpo nu

Como quem se equilibra na ponte esguia

É ainda a minha boca descobrindo a tua

Como quem come uma maça de olhos vendados

É ainda a irreverência das minhas pernas entrelaçadas nas tuas

Como quem se senta à lareira em dias de Inverno


Venha o que vier, quem vier

Escondi-te em mim


Vou voltar

Partiste
Como quem esconde o medo
Dizendo no silêncio
Encontramo-nos em segredo
Do outro lado do cais

Especado
Procurava o princípio do fio
Que te pescasse
Procurava uma dor
Uma chaga que me embalasse na mortalha
Em busca do teu cais

E tu, nas marés do tempo
Sopravas a eternidade
Em busca do momento
Em que os nossos corpos imperfeitos
Se entrelaçassem em todo o lugar

Era lá, era lá que me queria esquecer
Da estrada que nos separou

Era lá, era lá que possuirias o meu cheiro
Em danças de orvalho

E tu no silêncio do murmúrio das rosas
Liberta do corpo que te prendia
E eu no murmúrio dos espinhos da angústia
Preso ao corpo que te pertencia
Como se a tua paz fosse a minha guerra

Os relógios da saudade parecem eternos
Mas sei que um dia vou voltar
Para o palco do teu cantar
Adormecer no teu peito
À sombra que já não há

2 de março de 2009

ninguém

cai o pano e tudo são
palhaços que se vendem no circo
caixotes do lixo revirados
e um estendal repleto de condenações


por detrás do muro
escondem-se tiros cercados em arame farpado
quartéis de luxo abandonados
e quadros... quadros de vingança cintilando na poeira levantada


é só um pano da louça roído dos ratos
e por detrás das paredes de cartão
quantos caminhos basculantes
desse ninguém que não quer chegar a casa


por detrás dos cajueiros
armas outrora depostas
e gente a apodrecer às escuras
gente que nasceu na terra errada
gente que culpa o seu deus
enquanto os seus irmãos se encarregam do resto


há sempre um silêncio
uma ausência
uma parte que não volta
um poeta que exaspera esse alguém

O deserto

Começar. Recomeçar.
Ver para além do medo.
Contemplar o murmúrio do silêncio.
Construir um altar solitário.
Respirar suavemente o vento forte.
Trajar um camelo.
Andar... andar sem dimensão.
Encharcar a boca de água.
Rir o desespero.
Ver o Sol em fogo, a estrada em espelho.
Sem saber cantar.
Lembrar o rosto de um amigo.
Parar... nunca parar.
Pintar o Teu nome à chegada.
Abrigar... embriagar o corpo desnutrido.
Encostar a cabeça ao teu ombro nu.
Beijar a noite em despedida.
Espantar por existir.
Ter a certeza do feliz por um raio de luz difuso.