30 de maio de 2008


Até não poder mais


Não posso mais mentir, Constança

Sou apenas a resistência do passado

Como guerrilheiro fiel

A um amor que já passou


Não posso mais sentir, Constança

Os braços da revolução

A pele maltratada de Maio

E uma esperança

Morta em vão


Não posso mais descansar, Constança

À sombra dos dias azuis do rio

As palavras flutuantes

Afundaram-se

Como pedras


Não posso mais contar segredos, Constança

Como quem estica os braços

Na escuridão

Somos apenas desconhecidos


Não posso mais, Constança

Ser manso como um sopro ao ouvido

Agreste como pássaro a aprender a voar

Já não rosas

Entre nós


Não volto

Até não poder mais


Manuel Sousa

28 de maio de 2008


Desalojado

Às vezes desejo partir forçado

Não poder levar nada

Nem as certezas

Escutar o silêncio dos passos sem chão

Perder-me na multidão


Entregar a sobrevivência em mãos alheias

Aprisionar o afogo

De já nem sentir raiva

Porque à volta tudo foi desalojado


Agarrar alguém

Prender a mão numa oração improvisada

Porque a vida e a morte

São rostos desconhecidos

25 de maio de 2008


Vives em mim


Às vezes parece que ainda ouço a tua voz

Imponente

Que a morte não levou o teu silêncio


Às vezes as palavras têm a tua dor

A tua agitação interior


Às vezes volto a ser criança

E a lua tem o teu rosto

Imagino-te escondido

Ao percorrer a escuridão

Nem consigo disfarçar o arrepio de criança

Ao imaginar encontrar-te


Mesmo que não sejas mais real

Hei-de procurar-te sempre

Hei-de contar-te ao mundo

22 de maio de 2008

És invisível

Enquanto a chuva cerra o horizonte

Exagero tudo o que penso

No cinzento da noite


Não sou inteiro

Antes redefinido a cenários

Voltando ao improvável

Dos nossos corpos abraçados


Deslizo no impossível

De ontem


Amanhã voltarei a caminhar à chuva

Porque amo o invisível

21 de maio de 2008


Cumplicidade


Estranha facilidade com que te tornaste confidente

Bastou talvez o meu sorriso alheado

Pouco mais

Logo desembocaste em preocupações

Lamúrias cinzentas intocáveis

Débil corpo mortal


Gosto da cumplicidade

Do bater de um coração irrequieto

O respirar da inquietude

O correr nu das preocupações

Mas de quem posso conhecer no seu todo

Inesperadamente sem defesas


Gosto do suor entranhado

Da alma

Desafiando a ansiedade corporal

Da confidência

Que em ti não existe


Gosto do silêncio

Do fumar de um cigarro

Confiando à vida não apenas mais um dia

Mas o dia

15 de maio de 2008



Fascínio


Não acredito no amor à primeira vista

No amor, talvez

Acredito no fascínio


Gosto das pessoas que bebem água

Pelas mãos suadas

Na fonte mais perdida


Gosto de quem caminha introspectivo

No silêncio incómodo da sua alma

Sem fim à vista


Gosto de quem me agarra repentinamente

Só pela euforia


Gosto da mão estendida

À procura do abrigo cúmplice

Dedos enternecidos

Com a pedra mais aguçada


Gosto do olhar comprometido

No abraço pesado

Da chegada


Gosto da incerteza do próximo encontro

Da espontaneidade do fascínio

10 de maio de 2008


Barco ao largo


Às vezes apetecia-me não ter segredos

E o mundo ser livre

Sem rasto

Sem o sopro do respirar


Outras vezes amo o segredo

Mudo

Parte da expressividade da vontade

Como se definisse loucura


Está tão entranhado em mim

Que o sinto como infinito

Sede do meu destino

De todas as cores

Fogo entre mãos


Confunde-se com o sonho

Como barco no mar

7 de maio de 2008


Segredos da noite


É talvez o último dia da minha vida

Confidenciei à noite a desordem da loucura

Sobrevivente sem credencial

Amargurada na solidão


Amanhã saudarei o sol

Em projectos de vida

Repleto de fotografias

Veias estranguladas

Em hipocrisias viajantes


Só hoje poderei descrever

O lago onde nos encontrámos

Corpo despido da noite

Aquela fúria dos amantes

Refúgio da loucura


Em tudo sou desejo

Sem local a avistar

Despido de armas

Tecendo teias de solidão

Vazias de tudo


Hoje não tenho segredos

Do teu corpo