24 de junho de 2010

Havia dias em que apetecia lá voltar

Havia dias em que voltava ao nosso local
E a solidão das recordações
Fazia o meu corpo oscilar na ponte
Suspenso por fios de desejos
Que por ali também estivesses perdida

Mas nem as badaladas vindas da Capela
Nem as pedras salpicando no charco
Te traziam de volta

Havia dias em que todo o sangue se petrificava
Num jogo de vultos
E apenas as lágrimas do medo
Limpavam a imagem distorcida
Do ser que se passeava com a distância do teu andar
O fulgor das tuas amarguras
Mas que não tinha a beleza dos teus lábios

Havia dias em que entendia a dureza dessa vida
Avistava-te, do escuro da noite, na janela do sótão
Escrevendo palavras num ímpeto de minuciosidade com a vida
E como poderia não o ser?
Se o corpo se vai imiscuindo nas cores do horizonte
E a sombra se vai perdendo

Partimos
Mas havia dias em que apetecia lá voltar

19 de junho de 2010

O filho de uma operária

Quando te vi,
Não sabia sequer reconhecer se eras homem ou mulher.
Trabalhavas com a cabeça baixa,
Luvas até à cabeça,
Carregando máquinas de guerra a braços.
Vagabunda,
Ali estendida sob o trabalho,
À força de sobreviver.

Chorei. A própria ignorância.
Não sabia que voavam das tuas mãos.
Não sabia que o avião de papel,
Retocado,
Que me fazias vezes sem conta quando era miúdo,
Era o trabalho de uma vida,
Incógnita.

Chorei. A própria raiva.
Não sabia que a vida é um número em série,
Sem nome, nem ambição.
Não sabia que tinha crescido
À custa da obediência das tuas mãos.

4 de junho de 2010

As memórias de memórias

Pudesse eu
Não viver do passado,
De memórias de memórias,
D’outros olhos que não os meus.

Pudesse eu
Resgatar o teu corpo violentado de morte.
E do outro lado do vidro,
Pegar a tua mão.

Pudesse eu
Voltar à estação onde te deixei
E não saber como viver.