2 de abril de 2009

Hoje

Hoje acordei e vesti-me de preto, Constança
Em gestos mutilados percorri embevecidamente
O meu corpo morto

Saí, Constança
Acariciei o meu cavalo
Como criança a levar à escola
E partimos mudos
Atrás do tempo que não quis, não quero

Quem éramos nós
Desfilando nos campos abandonados
Colhendo as sobras do que não plantámos
Semeando chagas - com que me assinalaste - em sombras

Andámos a trote estrada fora, Constança
Pobre animal esbaforido
Carregando o meu calvário
E eu à espera da sorte em forma de lança final
Da espada que encarniçasse o peso do corpo

Voltámos já era fim da tarde, Constança
A casa continuava com o seu ar penoso
Sentei-me no terraço - o sítio onde não tinha de te ouvir
Bebi um trago da cerveja de sempre, já pútrida dos dias
E deixei o corpo permanecer
Na esperança de não pensar

À noite, sim, é difícil não chorar, Constança
É difícil sobretudo não pensar
Nas minhas mãos violando o teu corpo
Esmagando os teus seios
Batendo - porque me obrigavas - no teu rosto descontrolado

Errado? Tudo é errado quando a sorte não chega
Nasci filho da terra
Amadurecido no ventre desventrado
Sisado de uma carícia - ainda que por engano, por fraqueza humana
Cresci sem identidade
Sem morada
Namorando ferozmente o corpo formatado

Já nem sei quem fui
Quem fomos, Constança
Para lá do que penosamente o corpo deixou
E a alma se queixou

Manuel Sousa

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